Em frente ao mar, estávamos, meu pai e eu, sentados de
pernas cruzadas, olhos fechados e em silêncio. Eu escutava o barulho das ondas
quebrando e volta e meia sentia a água gelada tocando minhas pernas. Meu pai
meditava e eu apenas o imitava, não sabia direito o que estava fazendo, nunca
tinha recebido uma instrução real sobre o processo, apenas fechava os olhos e
ficava ouvindo o mar. Era algo simples, mas era bom. Devia ter por volta de
quatro anos e nessa idade qualquer coisa que seja feita com o seu pai é o
máximo. Compartilhar um momento, uma prática, eu me sentia importante, quase um
adulto.
E uma onda veio e me levou. Não metaforicamente, mas de
forma real e inelutável, não tive tempo nem de gritar. Ainda consegui, em meio
ao caldo que tomava, ver meu pai sentado e de olhos fechados, sem ter a menor
ideia do que me acontecia. Fiquei apavorado, tentei voltar para a superfície,
mas a água me puxava. Não sei ao certo como se deu, mas um surfista me puxou
pelo braço e me levou de volta para a areia. Lembro da cara assustada do meu
pai, do gosto da água salgada e de me sentir grato ao anônimo que me
salvou.
Essa foi uma das minhas primeiras experiências em meditação.
Não sei como, mas ao que tudo indica, não me traumatizei.
Meu pai era artista plástico e morávamos em uma área grande
com a natureza em volta razoavelmente
preservada, o estúdio dele ficava uns dez minutos de caminhada distante da
nossa casa. Muitas vezes, minha mãe me mandava levar laranjas para ele. Ao
chegar lá no estúdio, ele cortava a laranja em quatro pedaços e a comíamos
juntos.
Na época, a maior parte dos trabalhos do meu pai era feita
com bico de pena. Podia levar meses ou mesmo mais de um ano para que um quadro
ficasse pronto. Cada tijolo de uma construção, cada folha de uma árvore eram
desenhados individualmente. Apoiado nas leituras zen budistas, ele tinha a
paciência e a concentração como as bases do processo artístico.
Crianças aprendem a olhar para nuvens e enxergar coelhinhos,
cachorros, etc Eu dominava essa arte e também sabia “ler” borra de café como se
fosse um velho mago, não enxergava o futuro, apenas via formas diversas no
fundo da xícara. Sabia ainda ler cascas
de árvores, toalhas sujas de comida e toda e qualquer mancha que aparecesse pela
frente. Tinha aprendido que as coisas mais belas estavam nos detalhes e que
formas e fábulas se escondiam na sujeira, nas árvores e nas nuvens.
Meu pai me ensinou todos esses segredos e eu o via como um
alquimista mais do que como um artista. Ensinou ainda o valor do silêncio.
Dizia-me para ficar sentado de pernas cruzadas e olhos fechados ouvindo o vento
ou o mar.
Anos se passaram antes do meu reencontro com a meditação
após a morte dele. Esses escritos são apenas uma tentativa de organização
e rememoração de como tudo isso se deu, na esperança de aumentar minha
compreensão sobre o meu próprio caminho. Hoje, quando sento ao lado da mulher
que amo para meditar, sou o mesmo garoto que foi levado pelo mar de Ipanema e
que criava lendas a partir de manchas numa xícara. Mas sou também outra pessoa
e ao escrever essas linhas senti como se estivesse entrando em contato com
vidas passadas. Enquanto escrevo o passado, desenho o futuro em meio a manchas
de memórias e emoções presentes.