terça-feira, 29 de março de 2016

Vazio

Que o tempo me dissolva
Que eu me perca
E que perca, com isso, tudo o que tenho
Cor, gênero, classe
Que as bocas que apreciam a divisão não mais busquem se somar aos meus ouvidos
Que eu me torne um estranho
Para que não mais me convidem para tristes mesas fartas
Que no lugar disso, eu compartilhe sentado no chão
Comida que nunca caminhou, amou e chorou sobre este mesmo solo
Que eu compartilhe a vida
Com outras pessoas perdidas e vazias de si
Mas repletas do mundo

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Mentes e árvores






Cada monge, cada meditador que cheio das mais puras intenções cultivasse a bondade, o altruísmo e o amor por todos os seres, contribuiria para o mundo, em termos de energia mental, da mesma forma que cada árvore contribui em relação ao oxigênio que respiramos. Meu pai sempre defendeu tal ideia. 

É claro que a ação é indispensável, porém mesmo ela, inevitavelmente, surgirá como resultado de pensamentos e sentimentos. Mas nas redes sociais e nas tramas da vida real o que vemos ganhando força e voz é o ódio em suas mais diferentes faces. Temos, de um lado, a estúpida e cruel materialização do mal nas ações terroristas - para as quais todas as câmeras e olhares estão apontando nos últimos dias. E de outro, o individualismo covarde do cidadão médio que espuma de raiva ao se deparar com tudo o que não lhe é espelho. Com o que pretendemos combater a barbárie dos assassinos de inocentes anônimos? Com mais ódio e intolerância? 

Conta-se que um tibetano, após anos vivendo como prisioneiro na China, afirmou - sobre sua experiência no cárcere - que se sentiu em perigo apenas algumas vezes. Quando perguntado sobre o tipo de perigo que enfrentou, respondeu que correu por momentos o risco de perder a compaixão que sentia por seus algozes.

Se pegarmos uma fração da atenção que despendemos cotidianamente sobre os nossos inimigos e a redirecionarmos para dentro de nós mesmos, quanto de compaixão ainda conseguiremos encontrar?

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A tela e o céu






Bressane disse que “olhamos para a tela hoje como olhamos antes para o céu”. Ele se referia ao cinema, mas quando pensamos na soma de telas que nos ocupam a visão, vemos que é ainda maior a transformação. As telas pedem um olhar diferente do que mirava o céu. Raso, inquieto, compulsivo. Assim, não trocamos apenas o céu pela tela, trocamos a própria forma de olhar.

Em um retiro de meditação, sem tela alguma à disposição, resta o céu. No entanto, olhamos para ele com os olhos treinados pelas telas. É preciso algum tempo para se reaprender a observar uma nuvem, uma formiga, folhas que balançam com o vento. 

Mas como o que estamos fazendo, com todo esse silêncio e essa observação da respiração, é rumar ao encontro do que pode haver de mais natural, o processo vai ganhando força por si mesmo e pouco a pouco os outros sentidos também vão despertando. Percebemos, então, o óbvio: a chuva tem som e cheiro, assim como também os têm os dias ensolarados. E isso nos diz respeito, nos fala sobre nós mesmos. 

Meditar é um pouco isso, descobrir que até então estávamos muito agitados e dispersos para percebermos as pequenas verdades sobre nós mesmos sussurradas pela chuva.

terça-feira, 17 de março de 2015

Viajar para longe



Queria ter acordado hoje e saído por ruas que não conheço, observado hábitos que não são meus, escutado línguas que não domino. 

Ruas desconhecidas me fazem atento para não me perder. Costumes estranhos me ensinam sobre possibilidades de se ser humano de formas diferentes. 

E, assim, de olhos e ouvidos abertos, se caminha por terras outras que não as suas.

Por isso, a posse, tão buscada e festejada em nosso pequeno mundo, é sempre empobrecedora. “Minha casa”, “minha rua”, “meus costumes”. E, em meio a tantas coisas minhas, fico tão confortavelmente relaxado que não preciso mais olhar e ouvir. 

Um dia qualquer, ainda acabo me pegando irritado por ouvir alguém defender uma ideia que não é a minha. “Como ousa?”, eu pensaria diante do que não me pertence. E antes que isso aconteça, sinto que preciso viajar pra longe, mesmo já sabendo ser um erro esse sentir. Erro, pois todo canto está cheio de caminhos, palavras e ideias que me escapam. Mas enxergar e ouvir o diferente dentro do “meu” território é tão difícil. É preciso se desacostumar, se desapegar e, principalmente, estar presente.

Sento, fecho os olhos e observo a respiração.

domingo, 16 de novembro de 2014

Primeiras lições de Dhamma






- Veja que olhos lindos! – ele dizia se agachando ao lado de um sapo.
- Que cores impressionantes! – e apontava para uma mosca varejeira.
- Uma verdadeira armadura, um guerreiro medieval! – e me mostrava cada detalhe da carapaça de um besouro.

Assim, fui sendo educado na infância. Meu pai me chamava a atenção para a dignidade de todo e qualquer ser. Enquanto meus amigos tinham nojo de insetos, minhocas e sapos, eu via tais existências com admiração.

Se aparecia uma aranha em casa (e elas sempre estavam por lá, já que vivíamos cercados por mata), ninguém a matava. Ela era capturada com um pote qualquer e solta no meio do mato. Cobras eram mais raras e davam mais trabalho, era preciso um pedaço de pau e um balde. Mas no fim dava no mesmo, eu era chamado para me aproximar do bicho, olhar de perto aquele estranho visitante. Mas não havia medo, apenas respeito. 

Amigos da família e parentes ficavam indignados. Diziam que devíamos matar aquelas ameaças, que estávamos nos colocando em risco, pois poderiam voltar à nossa casa. Eu achava estranho aqueles adultos serem tão ignorantes. Minha mãe e minha irmã nunca subiram numa cadeira ao verem uma barata, nunca tiveram fobia de insetos, ratos, etc E eu aprendi que só há espaço para o pavor quando você não compreende o outro, seja ele uma cobra, seja um morador de rua, seja o estrangeiro que chega ao seu país à procura de emprego. A convivência, a aproximação respeitosa e a atitude de se estar aberto a ver beleza e dignidade em todo e qualquer ser gera respeito e capacidade de se colocar no lugar outro.

Àquela época eu não sabia, mas recebia minhas primeiras lições de Dhamma.

Muitos anos depois, quando com a minha mulher, na época minha namorada, fui para nosso primeiro retiro de meditação vipassana, foi como voltar à infância. A primeira regra do código de conduta é: “Abster-se de matar qualquer ser”. E como o centro de meditação fica no meio da mata, em Miguel Pereira, RJ, a convivência com bichos é inevitável. Espalhados pelo local, há vários “kits salva insetos”, que nada mais são do que potes plásticos para capturar qualquer aranha, escorpião ou besouro que entre nos quartos, banheiro, sala de meditação, etc. Pela primeira vez na minha vida eu estava em um lugar no qual a “regra do meu pai” era a regra para todos: “todos os seres merecem viver”. Eu me senti em casa.

sábado, 15 de novembro de 2014

Lendo cascas de árvores e toalhas sujas - como conheci a meditação





Em frente ao mar, estávamos, meu pai e eu, sentados de pernas cruzadas, olhos fechados e em silêncio. Eu escutava o barulho das ondas quebrando e volta e meia sentia a água gelada tocando minhas pernas. Meu pai meditava e eu apenas o imitava, não sabia direito o que estava fazendo, nunca tinha recebido uma instrução real sobre o processo, apenas fechava os olhos e ficava ouvindo o mar. Era algo simples, mas era bom. Devia ter por volta de quatro anos e nessa idade qualquer coisa que seja feita com o seu pai é o máximo. Compartilhar um momento, uma prática, eu me sentia importante, quase um adulto. 

E uma onda veio e me levou. Não metaforicamente, mas de forma real e inelutável, não tive tempo nem de gritar. Ainda consegui, em meio ao caldo que tomava, ver meu pai sentado e de olhos fechados, sem ter a menor ideia do que me acontecia. Fiquei apavorado, tentei voltar para a superfície, mas a água me puxava. Não sei ao certo como se deu, mas um surfista me puxou pelo braço e me levou de volta para a areia. Lembro da cara assustada do meu pai, do gosto da água salgada e de me sentir grato ao anônimo que me salvou.

Essa foi uma das minhas primeiras experiências em meditação. Não sei como, mas ao que tudo indica, não me traumatizei. 

Meu pai era artista plástico e morávamos em uma área grande com a natureza em volta  razoavelmente preservada, o estúdio dele ficava uns dez minutos de caminhada distante da nossa casa. Muitas vezes, minha mãe me mandava levar laranjas para ele. Ao chegar lá no estúdio, ele cortava a laranja em quatro pedaços e a comíamos juntos. 

Na época, a maior parte dos trabalhos do meu pai era feita com bico de pena. Podia levar meses ou mesmo mais de um ano para que um quadro ficasse pronto. Cada tijolo de uma construção, cada folha de uma árvore eram desenhados individualmente. Apoiado nas leituras zen budistas, ele tinha a paciência e a concentração como as bases do processo artístico. 

Crianças aprendem a olhar para nuvens e enxergar coelhinhos, cachorros, etc Eu dominava essa arte e também sabia “ler” borra de café como se fosse um velho mago, não enxergava o futuro, apenas via formas diversas no fundo da xícara.  Sabia ainda ler cascas de árvores, toalhas sujas de comida e toda e qualquer mancha que aparecesse pela frente. Tinha aprendido que as coisas mais belas estavam nos detalhes e que formas e fábulas se escondiam na sujeira, nas árvores e nas nuvens.

Meu pai me ensinou todos esses segredos e eu o via como um alquimista mais do que como um artista. Ensinou ainda o valor do silêncio. Dizia-me para ficar sentado de pernas cruzadas e olhos fechados ouvindo o vento ou o mar. 

Anos se passaram antes do meu reencontro com a meditação após a morte dele. Esses escritos são apenas uma tentativa de organização e rememoração de como tudo isso se deu, na esperança de aumentar minha compreensão sobre o meu próprio caminho. Hoje, quando sento ao lado da mulher que amo para meditar, sou o mesmo garoto que foi levado pelo mar de Ipanema e que criava lendas a partir de manchas numa xícara. Mas sou também outra pessoa e ao escrever essas linhas senti como se estivesse entrando em contato com vidas passadas. Enquanto escrevo o passado, desenho o futuro em meio a manchas de memórias e emoções presentes.